Ao longo do tempo, quer no âmbito de formações, quer em eventos de consciencialização para a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), a APELA tem procurado abordar as especificidades desta patologia e as razões pelas quais se torna premente o recurso a uma abordagem multidisciplinar, no âmbito da qual dialoguem áreas como a neurologia, a pneumologia, a fisioterapia, a terapia da fala, a gatroenterologia, a nutrição, a psicologia, o serviço social e os cuidados paliativos. 

Apesar do reconhecimento de uma maior consciencialização dos profissionais para esta necessidade e do esforço que tem sido desenvolvido, um pouco por todo o país, para garantir a criação de equipas multidisciplinares coesas para o acompanhamento de pessoas com ELA, a sua constituição, a permanente articulação dos membros que a constituem e a sua continuidade no tempo, nem sempre são metas alcançadas. O contexto pandémico no qual estamos inseridos, a rotina dos dias e a escassez de recursos humanos e técnicos no SNS, vieram acrescentar uma maior dificuldade no cumprimento deste desiderato.

Luciana Frade, Médica interna de Medicina Interna no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, fala-nos sobre este tema e discorre sobre um outro, que também temos vindo a abordar: o recurso aos Cuidados Paliativos e a sua introdução imediatamente após o diagnóstico de ELA.

Um artigo publicado na Revista Health News, que partilhamos também aqui:

Por Luciana Frade
Mestre em Medicina pela Charles University, CZ
Médica interna de Medicina Interna (5 ano) Centro Hospitalar Lisboa Ocidental
Colaboradora voluntária com APELA
Mestranda 2.ano do Mestrado Cuidados Paliativos 2018/2020 – Universidade Católica Portuguesa

A Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), retrato de um percurso inevitável de evolução crónica, degenerativa, progressiva, incurável e complexa não pode dissociar-se ad initium dos Cuidados Paliativos. Acontece que a doença oncológica possa não ter acesso a tratamentos oncológicos? Acontece que a doença renal crónica em fase terminal não seja abordada por terapêutica de substituição da função renal? Acontece que um evento neurológico agudo não tenha acesso a medicina física e de reabilitação? Porque acontece então que uma patologia neurológica, degenerativa e agressiva como a ELA possa ainda tantas vezes percorrer um caminho francamente sofrido que culmina em morte sem ter o tratamento e apoio que lhe é devido e preconizado cientificamente. Não serão estes doentes detentores dos mesmos direitos de acesso aos cuidados de saúde adequados? Estaremos a fazer saúde à parte do que nos dizem as guidelines e a ciência?

Segundo as EFNS guidelines on the Clinical Management of Amyotrophic Lateral Sclerosis1 a abordagem clínica a estes doentes deve incluir uma equipa multidisciplinar de forma a chegar a todas as suas necessidades (controlo de sintomas, comunicação, fisioterapia, gestão da nutrição, abordagem de questões sociais, espirituais, manejo da angústia etc.). Relembro a importância do detalhe em Cuidados Paliativos no impacto direto dos cuidados ao doente.

O mesmo documento diz-nos que esta equipa deverá ser composta por neurologista, gastrenterologista, medicina física e reabilitação, assistente social, terapeuta ocupacional, terapeuta da fala, fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo e clínico de cuidados paliativos. Repito, clínico de cuidados paliativos como parte integrante e fundamental de todo o doente com patologia incurável e inevitavelmente complexa. Podemos ler ainda que o doente de uma forma geral deve ser reavaliado a cada 2-3 meses, no entanto deve existir um contacto regular entre família/doente pela equipa de suporte entre consultas. Quem está a fazer este apoio?

A Neurologia apresenta um papel vital no reconhecimento precoce de sinais e sintomas, bem como no diagnóstico da doença. No entanto, após esse diagnóstico e com o decorrer da doença, surge um espectro de necessidades que não pode e não deve ser assegurado exclusivamente pela especialidade dada a necessidade de uma abordagem multidisciplinar, frequente, contínua, diferenciada (nomeadamente no controlo sintomático). A ELA não tem hora e dia marcado, não pode esperar pela próxima consulta. Assim, como infelizmente ainda muito se observa, o clínico que diagnostica, não tem muitas vezes uma plataforma de suporte a estes doentes após identificação da doença. O doente é medicado com terapêutica modestamente modificadora da qualidade/tempo de vida, em alguns centros referenciado para suporte ventilatório e nutricional (PEG) e de pouco mais se constitui a equipa. Assim, temos assegurado: alguém que analisa neurologicamente a evolução e degradação do doente, alguém que apoia a ventilação (comprovado cientificamente o seu benefício, não necessariamente na dispneia, vulgo “falta de ar”) e garantimos a alimentação. Sem dúvida três aspetos fundamentais do núcleo de assistência, com os quais não nos preocupamos porque são uma garantia. Perguntemo-nos agora, no dia que surge alteração da fala, dificuldade na comunicação, no dia em que o doente fica verdadeiramente isolado, que solução estamos a ter para estes doentes? Têm todos acessos a terapeuta da fala? Quem está a trabalhar o doente no sentido da prevenção da queda (numa fase inicial), de exercícios de relaxamento muscular, de cinesioterapia respiratória (complementar à terapêutica), técnicas de recrutamento? A fisioterapia é uma realidade universal? Quando o doente deixa de ter capacidade de se alimentar de forma fisiológica e de forma a responder às suas necessidades, que aconselhamento tem disponível, quem poderá ajudar a encontrar alternativas que satisfaçam o doente (do ponto de vista prazeroso que também é qualidade de vida), adequar medidas? Existe apoio nutricional? 

E pergunto agora, quando surge dor, no dia que surge sialorreia, no dia que surge xerostomia, espasticidade muscular, insónia, no dia que surge farfalheira, dificuldade respiratória (inevitável o seu surgimento com progressão de doença), obstipação, angústia e sofrimento psicológico, problemas relacionados com espiritualidade, unfinished business, preparação a morte, abordagem do luto, quem está a fazer esse trabalho? Na maioria dos casos, ninguém. Não é uma realidade universal para todos eles a referenciação precoce a cuidados paliativos. Diagnóstico de ELA ainda não é equivalente a referenciação imediata e acesso a Cuidados Paliativos em Portugal. Assumimos, portanto, de forma clara e bem objetiva aos olhos de todos que o doente pode e vai enfrentar o sofrimento da ausência de cuidados/tratamentos dirigidos e adequados à sua fase de doença. É a dura realidade que vivemos. Não resta outra alternativa a estes doentes que recorrer ao Serviço de Urgência, receber uma abordagem de doente agudo e regressar ao mar onde navega sem rumo.

É um facto que profissionais diferenciados em CP não abundam, mostra-nos o relatório do Observatório de Cuidados Paliativos da Universidade Católica Portuguesa2, a título de exemplo, que existe o equivalente a 66 médicos quando deveria existir para a nossa realidade nacional cerca de 496; 243 enfermeiros quando deveria existir 2384; 17 psicólogos quando deveria haver 195 e a 22 assistentes sociais quando deveria de haver 195. É um facto que sem recursos não se pode chegar a todo o lado, mas certamente sem identificação e reconhecimento que é vital uma abordagem multidisciplinar para que estes doentes tenham qualidade de vida, mesmo com profissionais disponíveis, manteremos um cuidado desajustado e deficiente. Urge garantir recursos, urge alterar mentalidades.

 

EFNS guidelines on the Clinical Management of Amyotrophic Lateral Sclerosis (MALS) – revised report of an EFNS task force European Journal of Neurology 2012, 19: 360–375, doi:10.1111/j.1468-1331.2011.03501.x.
https://ics.lisboa.ucp.pt/asset/4181/file