Vai e fica. Regressa, enfim, ao movimento inerte do próprio corpo, que já não reconhece como seu. Esta é a história do Vítor.
No lugar frio, onde as paredes graves se erguem vazias, está quem vai e está quem fica. Está quem permanece na cama presa ao azul do chão polido, pisado pelo som impermanente dos passos dos homens, que vagueiam ordenados para conquistar o céu, que se faz das cores que não existem. As cores que não existem na realidade em que os homens habitam.
O Vítor viu estas cores no silêncio do quarto onde esteve institucionalizado. Foi nestas cores que se encontrou só e que se perdeu acompanhado pela angústia de quem não sente o ar entrar e de quem não consegue fazer a campainha tocar, para chamar quem o possa ajudar.
Diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) com 46 anos de idade, o Vítor perdeu a fala natural e a capacidade de mover voluntariamente os músculos. Permanecem imóveis as pernas que um dia o autorizaram caminhar; os braços que ousaram, francos, abraçar; as mãos que, pelo tato, registaram as pessoas e as coisas ausentes, para as tornar presentes.
O Vítor foi um homem do cinema. Um homem que se fez por detrás da objetiva e que cedo apresentou uma inclinação invulgar para cruzar verdade e fantasia, luz e sombra. Demorava-se nu nesse lugar crepuscular, onde distância e proximidade se fundem para fazer nascer o inusitado.
À data da visita da APELA ao Hospital no qual se encontra, o Vítor aguarda a instalação de um conjunto de sistemas aumentativos de comunicação, para poder libertar a única coisa que a doença não resgatou: o pensamento.
Encontramo-lo prostrado na cama. O rosto nu, a tez branca, os lábios cerrados, em esforço, para conter a saliva que já não consegue deglutir. O olhar, perdido nas ideias que não pode verbalizar, desaba humedecido sobre os terapeutas.
Diz-nos de olhos fundos, numa espécie de varrimento ocular desorientado, que precisa de ser ouvido. Precisa de comunicar mensagens aparentemente tão simples como ‘endireita-me os óculos’, ‘coça-me o braço’, ‘muda-me a fralda’; ou estruturas semanticamente mais complexas como ‘leva-me para casa’, ‘dá-me um abraço’, ‘deixa-me em paz’.
Ouvimos no olhar fundo do Vítor, este grito. Um som agudo, vibrante, agonizante de quem sustém o mundo, agitado pela revolta de estar preso ao próprio corpo e pela consciência de um medo, que atravessa devagar as noites tingidas, para recordar os homens que permanecem despertos, daquela que é a sua finitude.
Em contexto hospitalar, torna-se premente garantir que a pessoa com ELA tem as suas necessidades de comunicação satisfeitas ao longo de todo o processo de prestação de cuidados de saúde.
Antes de ingressar na unidade e mesmo nos primeiros meses em que esteve institucionalizado, o Vítor comunicou sempre através de um sistema de controlo pelo olhar. Através do PT PC Eye Mini, os olhos do Vítor chegavam ao mundo e tocavam quem estava do outro lado do computador, numa teia de comunicação que podia ter continuado, não fossem as dificuldades que surgiram associadas à progressão da doença e às diversas configurações que caracterizam a maioria das unidades hospitalares, nem sempre preparadas para dar uma resposta eficaz e atempada a pessoas diagnosticadas com uma doença como a ELA. A ausência de colaboradores preparados e treinados para recorrer a tecnologias de apoio à comunicação, a escassez de tempo e a rotatividade contínua das equipas, constituem algumas das dificuldades identificadas em várias unidades de saúde. Estes e outros fatores, suportam a resposta que a APELA tem procurado criar, nomeadamente junto das equipas de saúde de unidades hospitalares distribuídas pelo território luso e que recebem pessoas diagnosticadas com esta patologia. Reside aqui, nomeadamente numa área como a comunicação aumentativa e alternativa, a necessidade de consciencializar os profissionais de saúde para a importância da adoção de um conjunto de estratégias de acompanhamento da pessoa com ELA, no recurso às TaC, baseado na premissa de que a tecnologia será sempre inerte, caso não seja devidamente adaptada à realidade e ao contexto de cada pessoa.
No caso da visita realizada junto do Vítor, e tendo em consideração que a alta tecnologia não tem que ser a única opção responsável por garantir uma comunicação eficaz e inteligível entre doente e profissional de saúde, a APELA preparou uma tabela de comunicação de baixa tecnologia, ajustada às necessidades diárias e às solicitações mais frequentes manifestadas pelo Vítor. Foi ainda estabelecida a ponte entre a APELA e a terapeuta da fala do Hospital, para possibilitar um acompanhamento tão próximo e presente, quanto possível.
O Vítor faleceu no dia 3 de Junho, de 2018, com 48 anos.
Entre as paredes dos lugares pelos quais passou
flutua a mesma mente livre,
hoje morada de um corpo
já esquecido do peso da desobediência muscular.
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O Vítor Alves foi diagnosticado com ELA em 2016. Desde 2017 que comunicava com recurso a tecnologias de apoio à comunicação, generosamente cedidas pela Fundação Portugal Telecom, tais como um PT PC Eye Mini, um braço articulado, um manípulo Jelly Bean, um inproman, um dispositivo para controlo ambiente, e o software de comunicação PTGRID 3. Possuía também uma campainha adaptada.
A visita realizada em contexto hospitalar, junto do Vítor, foi possível ao abrigo do Projeto financiado pelo BPI Capacitar, através do qual a APELA apoia pessoas diagnosticadas com ELA, que não sejam diretamente acompanhadas nas instalações da Associação, sitas em Lisboa e Porto.
Para mais informações sobre este projeto ou para obter um apoio desta natureza, envie um e-mail para direcao@apela.pt ou ligue para 218 491 756 .