O doente deve comer o que lhe apetecer e dentro do que for seguro. A PEG garantirá o restante aporte de alimentos e líquidos. Assim, mantém-se a nutrição, protege-se a respiração e pode manter-se o prazer da alimentação oral sem riscos nem angústias. A PEG não significa o fim da alimentação oral.
- O Professor Doutor Jorge Fonseca tem desenvolvido parte do seu trabalho no serviço de Gastrenterologia do Hospital Garcia de Orta. Quantas pessoas com ELA já avaliou, desde que iniciou funções neste serviço?
No Hospital Garcia de Orta, há quase 20 anos está organizado um grupo multidisciplinar de Nutrição Artificial, o GENE. O GENE segue doentes sobretudo ambulatórios, que podem necessitar de Nutrição Parentérica, Nutrição Entérica por gastrostomia endoscópica (PEG), ou nutrição baseada em suplementos nutricionais orais. Temos a experiencia de mais de 1000 doentes seguidos com alimentação por PEG, a maioria deles por doenças neurológicas. As pessoas que sofrem de ELA ou de outras doenças do neurónio motor têm elevada probabilidade de vir a necessitar de uma gastrostomia endoscópica: a PEG. No âmbito do GENE temos seguido muitas dezenas de doentes com ELA dos quais cerca de 55 alimentados através de PEG. Publicámos a nossa experiência positiva dos primeiros 37 doentes (doi: 10.20960/nh.561.) e temos vindo sempre a melhorar os cuidados e os resultados clínicos.
- Que papel pode ter a Gastrenterologia no acompanhamento da pessoa com ELA?
O Gastrenterologista é um elemento indispensável nas equipas de nutrição por duas ordens de razões: porque o sistema digestivo é o nosso órgão fundamental da nutrição e o Gastrenterologista é o médico especialista com a formação dedicada à compreensão da fisiologia e patologia do sistema digestivo. Mas também porque é o especialista em endoscopia digestiva. É chamado a colocar sondas e criar acessos como as gastrostomias, para alimentar os doentes com obstáculos mecânicos ou compromissos funcionais do tubo digestivo. Como elemento da equipa de nutrição, o gastrenterologista é indispensável ao acompanhamento do portador de ELA. Mas não só. A ELA pode modificar significativamente a rotinas de vida, com redução da mobilidade e alterações da alimentação. Muitos portadores de ELA sofrem de enfartamento, obstipação e outros sintomas que o gastrenterologista tem que minorar. Quer como gastrenterologista clínico, quer como endoscopista, quer como elemento da equipa de nutrição, o gastrenterologista é um profissional indispensável no acompanhamento dos portadores de ELA.
- A multidisciplinaridade e articulação entre as várias equipas que acompanham um doente com uma patologia com as especificidades da ELA, pode fazer a diferença na melhoria da sua qualidade de vida? Há falhas a este nível, no funcionamento das equipas em contexto hospitalar?
Infelizmente, a terapêutica farmacológica da ELA está muito longe do desejável. Assim, o suporte multidisciplinar assume um papel fundamental. Embora haja profissionais empenhados, a coordenação dos cuidados nem sempre é perfeita. No Hospital Garcia de Orta a coordenação do neurologista assistente com a equipa de nutrição do GENE e com a equipa que faz a avaliação da deglutição (otorrinolaringologista/terapeuta da fala) está bem estruturada há muito tempo e permite um suporte nutricional quase perfeito. Noutros aspetos e noutras instituições do nosso Sistema de Saúde ainda há muito que aperfeiçoar.
- O agravamento da disfagia na ELA pode estar associado à progressão da insuficiência respiratória?
Infelizmente, essa associação é frequente por vários motivos. Por um lado, as estruturas nervosas que controlam a respiração e a deglutição estão próximas e a ELA localizada nessa zona do sistema nervoso pode afetar ambas. Por outro lado, na doença avançada a falta de força muscular pode comprometer ambos, respiração e deglutição. Estes dois aspetos têm a ver com a natureza da doença e são difíceis de evitar… Mas um terceiro aspeto pode e deve ser evitado. Quando a capacidade de deglutição fica enfraquecida duas coisas acontecem: ocorrem múltiplos episódios de aspiração, muitas microaspirações para as vias aéreas, que prejudicam a ventilação e os doentes reduzem a ingestão levando a desnutrição a enfraquecer os músculos respiratórios. Estes últimos aspetos podem e devem ser evitados com adequação da nutrição à situação da doença.
- A Gastrostomia Endoscópica Percutânea (PEG) provoca, não raras vezes, alguma resistência por parte de doentes e cuidadores, que insistem em realizar a sua alimentação via oral, sacrificando o aporte nutricional adequado à sua condição e aumentando o risco de situações de engasgamento ou pneumonias por aspiração. De acordo com o conhecimento que tem nesta área, há sintomas específicos que devem ser considerados para avaliar esta possibilidade?
É uma infeliz realidade. Há alguma resistência à PEG por parte de doentes e cuidadores, o que não faz sentido. Porque a PEG não é uma alternativa à alimentação oral, é outra forma de alimentação que pode ser usada como complemento quando a deglutição não é segura ou não é suficiente. O que pretendemos e, muitas vezes, conseguimos é que o doente coma pela boca tudo aquilo que queira e que seja seguro, mas que a refeição oral não seja extenuante nem que se force a ingestão com alimentos de consistências perigosas. O doente deve comer o que lhe apetecer e dentro do que for seguro. A PEG garantirá o restante aporte de alimentos e líquidos. Assim, mantem-se a nutrição, protege-se a respiração e pode manter-se o prazer da alimentação oral sem riscos nem angústias. A PEG não significa o fim da alimentação oral.
- Existe uma fase ideal para avançar com a colocação da PEG? Na literatura científica, há evidências a este nível?
O uso da PEG na disfagia da ELA é consensual em todas as recomendações das sociedades dedicadas a esta doença. O momento exato do procedimento não está tão bem definido. No GENE do Hospital Garcia de Orta procuramos obter um suporte nutricional continuado, desde o diagnóstico. Desde o diagnóstico, otimizamos a dieta oral e promovemos a avaliação da deglutição pela equipa “otorrinolaringologista/terapeuta da fala”. Esta avaliação da deglutição é feita regularmente. Quando é detetada qualquer insegurança na deglutição a consistência dos alimentos é adaptada e é de imediato proposta a PEG. Quando feita precocemente, a alimentação oral convive harmoniosamente com a alimentação por PEG é previne-se a desnutrição e o risco de aspiração. Além disto o procedimento precoce é muito mais seguro que numa fase mais avançada.
- No caso de pessoas que colocam a PEG já numa fase avançada da doença, que cuidados acrescidos devem ter?
No GENE do Hospital Garcia de Orta fazemos sempre os procedimentos de PEG aos doentes com ELA com os doentes sedados por um anestesista. A intervenção anestesista permite uma sedação adequada com o controlo das funções vitais como só estes especialistas conseguem. Naturalmente, gostamos de evitar o procedimento em pessoas numa fase avançada da doença. Por um lado, a complexidade do procedimento é maior. Mais grave que isto é o fato de que numa fase avançada da doença o valor do tratamento nutricional pela PEG já se perdeu em grande parte: nestas situações já se instalou uma desnutrição grave que acelerou a perda de massa muscular. Quando o portador de ELA chega a uma fase avançada da doença sem PEG parte da destruição originada pela falta de alimentos é irreversível.
- Quais os procedimentos que devem ser adotados antes e depois desta intervenção? Há consenso académico relativamente às técnicas utilizadas?
No GENE do Hospital Garcia de Orta proporcionamos o suporte nutricional muito antes da PEG. A terapêutica nutricional na ELA tem que ser precoce e continuada. A PEG é um instrumento indispensável mas que é necessário coordenar com a restante intervenção nutricional. Naturalmente depois da PEG o acompanhamento tem que ser mais próximo, mas a nossa experiência com muitas dezenas de doentes com ELA, familiares e cuidadores é a de uma boa adaptação. A PEG é uma recomendação universal e as variantes técnicas são reduzidas. No GENE, temos experiencia com todos os sistemas disponíveis em Portugal e escolhemos o que melhor se adapta a cada caso.
- No que diz respeito à adesão para colocação da PEG, conseguimos retratar a realidade portuguesa e estabelecer uma analogia com a realidade verificada em contexto internacional?
Infelizmente, temos muito poucos dados que espelhem a realidade portuguesa. Não só os utentes como os profissionais de saúde demonstravam uma grande falta de informação sobre a PEG até há algum tempo. Nos últimos anos esta realidade tem vindo a mudar. O trabalho de unidades pioneiras como a nossa tem chegado à generalidade dos profissionais de saúde e a procura de soluções integradas de suporte nutricional que incluem a PEG tem-se generalizado. Hoje são muitos os utentes e as instituições que nos procuram espontaneamente.
Caminhamos para uma sociedade com cidadãos mais empenhados e melhor informados e aproximamo-nos dos países em que cada cidadão é o primeiro garante da sua saúde e o primeiro gestor das suas doenças. Neste aspeto, estamos mais perto da melhor realidade internacional.
- Do conjunto de doentes que acompanha, consegue identificar um padrão de medos recorrentes, que estão na génese de uma hesitação face à colocação da PEG?
Na verdade, há um círculo vicioso maligno à volta da PEG. Muitos doentes e muitos familiares encaram a PEG como um sinal de doença em fase terminal. Acham também que a PEG vai terminar a ingestão oral. Como consequência, atrasam a PEG meses ou anos até uma fase de desnutrição avançada, empurram a sua doença para a fase terminal e só então se dispõem ao procedimento. Só usam a PEG quando já não pode cumprir a sua função de contribuir para manter um bom estado nutricional e, assim, prolongam o fantasma da PEG como sinal doença terminal. O nosso trabalho é também o de desmistificar este falso raciocínio e mostrar aos doentes, familiares e cuidadores que a PEG pode ser uma importantíssima ferramenta de qualidade de vida.
- Stephen Hawking viveu durante cerca de 55 anos com ELA. Foi um caso atípico por contrariar as estatísticas mas também pela forma corajosa como soube fazer corresponder cada perda a uma terapêutica capaz de minimizar o seu impacto. O recurso às TaC é ilustrativo dessa resiliência. O recurso à PEG pode ter tido, de igual modo, um papel decisivo nesta matéria?
Stephen Hawking foi um exemplo de um Homem capaz de ter um percurso exemplar e uma vida impar. Com a dificuldade acrescida de, muito novo, ter sido acometido pela doença. Nunca se rendeu às limitações da doença e é consensualmente apontado como um dos grandes Homens da nossa época. A nutrição por gastrostomia (como a PEG) foi uma pedra basilar na manutenção da saúde e da inteligência. A PEG também ajuda a manter a inteligência…
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O Professor Doutor Jorge Fonseca é Gastroenterologista no Hospital Garcia da Horta, EPE, e responsável pela consulta de Gastroenterologia na mesma unidade hospitalar.