Stephen Hawking foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). 
A progressão da doença manifestou-se não só na perda de mobilidade mas também na perda da fala natural.
Para comunicar, Hawking recorria a Tecnologias de Apoio à Comunicação (TaC), equipamentos que contribuíram para dar continuidade ao seu trabalho enquanto académico e enquanto astrofísico. Acima de tudo, estas tecnologias contribuíram para garantir um dos seus direitos enquanto pessoa: o direito à comunicação.

Através de uma conversa com a Engenheira Ana Rita Londral, investigadora com uma tese de doutoramento sobre ELA, procurámos compreender qual o papel das TaC na promoção da qualidade de vida de pessoas com esta patologia e qual o impacto que as mesmas
tiveram numa das figuras que mais se expôs publicamente, por esta via: Stephen Hawking (1942-2018).

 

1. APELA - A Engenheira Ana Londral desenvolveu a sua investigação de doutoramento sobre o impacto que as Tecnologias de Apoio à Comunicação (TaC) têm na melhoria da qualidade de vida de pessoas com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Na altura, e considerando a amostra que estudou, constatou um reconhecimento por parte de doentes e cuidadores relativamente à necessidade de recorrer a este tipo de equipamentos para comunicar?

Ana Londral (A.L) - No estudo que desenvolvi, estudei o impacto das tecnologias para a comunicação na qualidade de vida de doentes e cuidadores. Quando os doentes e cuidadores são bem informados, estimulados e acompanhados na utilização de tecnologias, estas possibilitam, de facto, uma melhor comunicação. Nesses casos, sim, há um impacto positivo na qualidade de vida, tanto dos doentes como dos cuidadores. 


2. APELA - Ainda no âmbito da sua investigação, foi confrontada com dinâmicas de resistência, por parte de doentes e cuidadores, para utilizar este tipo de equipamentos? Se sim, essas resistências foram manifestadas maioritariamente por doentes ou por cuidadores e/ou familiares?


A.L - Sem dúvida que o apoio dos cuidadores e familiares é essencial para o processo de adopção de tecnologias para a comunicação. Mas são sempre os doentes que têm de tomar a decisão. 

Os cuidadores são, por vezes, resistentes. Acham que não é preciso, criam ideias complicadas acerca destas tecnologias. Outras vezes, são eles os grandes entusiastas, mas o doente não quer ou entra num processo de negação e adiamento da decisão. Do que observei, depende muito da dinâmica familiar e das características psicológicas dos doentes e familiares. A falta de formação dos cuidadores formais é também um obstáculo evidente nesta área das tecnologias para a comunicação. 

Na minha experiência com doentes e cuidadores, tenho verificado que há dois momentos em que a necessidade de utilização de tecnologias para a comunicação é percepcionada pelos doentes e seus familiares. O primeiro momento, surge aquando dos primeiros sintomas. Estes primeiros sintomas são, na ELA Bulbar, as alterações na fala; na ELA medular, as dificuldades motoras nos membros superiores, que impedem de escrever ou de aceder ao telemóvel/computador. Nesta fase, há os doentes "early-adopters" que antecipam e começam a usar logo alternativas. É, na minha opinião, a altura que deveria ser privilegiada, já que há tempo para se ser informado, escolher e aprender a usar as tecnolgias.

A maioria, porém, procura as tecnologias em fases mais avançadas da progressão da doença, quando nem a fala nem os membros superiores permitem que o doente transmita o que pretende comunicar. Nesta altura, o doente já sofreu várias perdas, várias alterações na sua vida e várias intervenções clínicas. Por este facto, é uma altura em que as tecnologias para a comunicação devem ser simples e robustas, caso contrário são rejeitadas pelos doentes e familiares, que estão em crescente desgaste.  


3. APELA - Entre o término da sua investigação e o momento atual, podemos dizer que estamos mais próximos de um reconhecimento unânime, sobretudo por parte da pessoa com ELA, seus cuidadores e corpo clínico, da importância que as TaC podem ter na melhoria da qualidade de vida?


A.L - A APELA tem criado uma dinâmica muito boa nesta matéria. Nos últimos anos, o empenho em ações de formação de doentes, familiares e profissionais na área das tecnologias para a comunicação foi muito importante. Também, a meu ver, a consulta de terapia da fala na APELA foi um passo muito importante. Olhando em frente, é preciso criar mais consciencialização na sociedade e continuar as atividades de formação. 


4. APELA - Quais as principais dificuldades/obstáculos que identifica ao progresso e desenvolvimento desta área?


A.L - Como dizia, é preciso criar mais consciencialização na sociedade. Perdemos o Stephen Hawking, que era um exemplo fácil de ilustrar quando se pretende explicar o que são estas tecnologias e para que servem. Temos de encontrar mais referências e mais formas de mostrar à sociedade que comunicar é um direito de quem está vivo. Comunicar não é só falar ou piscar o olho para pedir um copo de água. Comunicar é ter o poder de falar com familiares e amigos, de tomar decisões sobre a sua própria vida, de expressar opiniões, de queixar-se e dizer coisas que os outros não gostam de ouvir... é isso tudo.

Eu não acredito que o Stephen Hawking tivesse vivido tanto tempo se não tivesse um meio para comunicar. 


5. APELA - A sociedade pós-moderna (uma sociedade sem tempo), está preparada para interagir publicamente com uma pessoa com ELA que comunique, por exemplo, através do controlo pelo olhar? Que mudanças precisariam de ocorrer para que este tipo de comunicação ocorresse de uma forma eficaz e inteligível?


A.L - A capacidade tecnológica do nosso tempo é imensa. Eu, como engenheira e investigadora, tenho acompanhado projetos muito interessantes na área da Saúde que poderiam ser orientados para apoiar as pessoas com ELA. O problema não é a limitação da tecnologia. Creio que é mais o interesse em desenvolver tecnologia com impacto real na vida das pessoas com ELA.  

Tenho-me questionado muito sobre a razão de ser tão difícil envolver gente da área tecnológica nesta causa. Certamente haverá muitas razões. Uma delas é, novamente, a consciencialização social. Creio que outra das razões é que as pessoas, em geral, têm dificuldade em encarar as doenças ou situações sem cura. Logo, não se envolvem para encontrar soluções. Outro problema é de escala: a população da ELA é pequena, o acesso a financiamento para desenvolvimento de tecnologias vêm na mesma proporção. Mesmo a nível europeu, o financiamento para projetos nesta área das tecnologias de apoio à comunicação baixou tremendamente, em favor de outros temas como o Envelhecimento. 

É uma sociedade sem tempo, como refere, mas também nunca houve tantas oportunidades de comunicar a partir de uma cadeira de rodas ou de uma cama de uma unidade de cuidados paliativos. Lembro-me de uma senhora com ELA que eu acompanhei, que seguiu diariamente a viagem do filho a Nova Iorque. Falava com ele todos os dias com mensagens de texto. Esta senhora mexia apenas ligeiramente a cabeça. Temos, em Portugal, vários exemplos de pessoas com ELA que quase não saem de casa mas que participam nas redes sociais pela internet. 

A tecnologia tem muito potencial. É preciso encontrarmos formas de obter financiamento para o desenvolvimento de soluções com impacto real na vida das pessoas.           


6. APELA - Stephen Hawking (SH) foi, talvez, uma das primeiras figuras que se expôs publicamente, acompanhado por tecnologias de apoio à comunicação. Qual a tecnologia utilizada pelo físico britânico?


A.L - Ao longo da progressão dos sintomas da ELA, o Stephen Hawking (SH) foi mudando e adaptando as tecnologias para a comunicação. No entanto, ele não escolheu ter a tecnologia mais avançada. Usava um sintetizador de fala muito antigo, que hoje se considera ser de má qualidade por ter uma voz muito artificial. Os sintetizadores de fala atuais são muito parecidos à fala natural e existem já sintetizadores que introduzem expressão à fala. 

Mais recentemente, o Stephen Hawking usava um sensor fixado na haste dos óculos que detetava ligeiros movimentos na face direita. Cada movimento era interpretado como um comando que acionava no computador um mecanismo de varrimento (em inglês, scanning). No ecrã, havia letras e palavras que eram destacadas uma a uma. Quando a letra ou palavra que o SH queria selecionar ficava destacada, ele fazia o movimento com a face direita, para selecionar. 

Eu conheci um cientista americano que desenvolveu uma interface muito sofisticada e quis mostrá-la ao SH. Este americano contou-me que o SH lhe disse que poderia ouvir a demonstração e dar a sua opinião, mas que não queria usar outro sistema além daquele a que estava habituado.   

O sistema do SH não era tecnologicamente muito evoluído, ao contrário do que muitas pessoas pensam. Em Portugal, os doentes com ELA podem ter tecnologias para a comunicação melhores do que as que o SH usava.   


7. APELA - Hawking pode constituir um exemplo a seguir? Que características podem fazer desta figura uma inspiração, numa área como a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA)?


A.L - O SH expôs-se publicamente com aquela voz sintetizada que todos nos habituamos a ouvir. Nesse sentido, é uma inspiração porque ultrapassou preconceitos. Normalmente, uma pessoa que não fala passa a ser olhada como tendo um défice cognitivo. O SH mostrou através da CAA que não é assim. Uma senhora com ELA que eu acompanhei na utilização de um tablet com voz sintetizada para comunicar, dizia-me que sentia que as suas amigas tinham passado a respeitá-la mais. Antes, tinha deixado de poder falar, tornou-se passiva, voltou a falar, tornou-se participante logo respeitada. 

Há muitas histórias que poderiamos contar, sobre pessoas que fizeram o mesmo que SH embora, por não serem famosas, não sejam reconhecidas.